Enfim, a tão esperada faculdade de medicina. Para os futuros médicos, o sonho de salvar vidas começa a se concretizar. Mas a empolgação costuma rapidamente dar lugar ao desespero de não conseguir dar conta dessa maratona incessante, na qual três turnos de estudos costumam ser a regra.
Quando bate o cansaço, a ansiedade aumenta e abrem-se as portas ao uso e, muitas vezes, abuso de substâncias estimulantes. E, para aliviar o estresse e a dor de se afastar de amigos e da família por conta dos estudos, bebidas e drogas estão sempre por perto.
Uma série de estudos recentes mostra a incidência preocupante de depressão, transtornos comportamentais e uso de substâncias lícitas e ilícitas por alunos desse curso. Em abril deste ano, a Universidade de São Paulo contou seis tentativas de suicídio no Departamento de Medicina.
Ana Clara Cruz Oliveira, 21, que está no sexto período da Faculdade de Medicina de Itaúna, resolveu estudar a questão, intrigada com cenas do cotidiano universitário. Na pesquisa “Uso não prescrito de agentes nootrópicos em estudantes de medicina em instituição de ensino superior de Itaúna”, ela e alguns colegas acompanharam 120 alunos no primeiro semestre deste ano e descobriram que um em cada seis usou, de forma esporádica ou frequente, o metilfenidato – que tem o nome comercial de Ritalina, psicoestimulante indicado para tratar Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) – para melhorar o desempenho acadêmico.
Desse total, 40% sem prescrição e 50% com relatos de efeitos colaterais, como boca seca, taquicardia, dor de cabeça e alterações comportamentais. “Esse é um assunto negligenciado, não existe um acompanhamento psicológico nas universidades”, disse Ana Clara Oliveira à reportagem.
Um grande estudo publicado em dezembro de 2016 no “Journal of the American Medical Association”, nos Estados Unidos, mostrou que o problema é mundial: 27,2% dos estudantes de medicina, incluindo os que estão em residência, têm depressão, e 11%, ideação suicida – pensamentos de autoextermínio.
Os pesquisadores cruzaram dados de 195 pesquisas de 47 países, incluindo o Brasil, englobando 129.123 estudantes. “Possíveis causas incluem estresse e ansiedade advindos da competitividade das escolas médicas”, afirmam os especialistas num relatório.
Criado por estudantes de medicina, mas com alunos de outros cursos também, o movimento Frente Universitária de Saúde Mental luta para trazer o tema à tona. Com o lema “Não é normal”, o grupo defende um ambiente sem opressão nas faculdades. “Não é normal que a faculdade se torne um gatilho para ansiedade. Não é normal pensar todos os dias em desistir do curso dos seus sonhos”, defende a campanha.
“Todos os dias recebemos relatos de alunos agradecendo a nossa iniciativa”, diz Ana Campos, aluna de medicina da Santa Casa de São Paulo e uma das coordenadoras do projeto.
A combinação de Ritalina, lítio (para psicoses maníaco-depressivas) e Paco (analgésico) já ficava na mesa de estudos, junto dos cadernos e livros. Era com seis comprimidos logo às 6h que Vítor Silva começava seu dia no curso de medicina.
Hoje formado e com 26 anos, ele conta que chegou a tomar mais de cinco tipos de psicoestimulantes para “aguentar o tranco”. “A sensação era de animação, concentração e memória a mil por hora. Conseguia decorar tudo o que lia e compreendia todo o conteúdo que eu estudava”.
O ritual era para encarar a primeira parte dos estudos, que seguia até as 14h. “Depois eu almoçava e tomava uma nova rodada de comprimidos. Ficava ligado até umas 20h, quando tomava pela terceira vez. Ia nesse ritmo até 2h.”
Turbinado durante o curso de medicina, o uso de psicoestimulantes começou no ensino médio. Tomava antidepressivo e roubava os remédios para emagrecer da irmã, à base de anfetaminas. “Eu precisava de bons resultados. Pegava escondido dela para não sentir sono de manhã nas aulas”. Depois de formado, Vítor parou com a Ritalina, o lítio e o Paco, mas adotou as anfetaminas. “Tinha a residência pela frente e precisava encarar os plantões”, diz.
Mas o organismo cobrou seu preço. Num check-up, descobriu que seu fígado estava próximo da falência e foi orientado a parar com qualquer substância. “Isso me assustou. Eu nunca fui de sentir efeitos colaterais, no máximo ficava irritado por não dormir direito”, conta.
Sob o risco de ter de se submeter a um transplante, o clínico geral admite que ainda sofre. “A vontade de tomar é grande, o corpo pede. Passei a fazer exercícios físicos e mudar meu estilo de vida para compensar”, diz.
Fonte: O Tempo
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